O papel político da ciência e das universidades públicas brasileiras

Raiane Assumpção*

Na atuação do Estado brasileiro, a ciência e as universidades públicas cumprem uma função estratégica e fundamental para o desenvolvimento cultural, tecnológico, social e econômico da nossa sociedade. O Brasil, apesar da escassez de recursos destinados à ciência e diante da falta de uma agenda política bem definida para o incentivo à pesquisa e à inovação, apresentou avanços relevantes no desenvolvimento científico e tecnológico nas últimas décadas. Mesmo agora, que enfrentamos a maior crise sanitária e econômica do século, o país foi um dos que mais contribuíram para produzir conhecimento científico para o enfrentamento da covid-19 e relacionado às consequências da doença.

Sendo assim, esse desenvolvimento corre risco permanente de ser interrompido e já atrasa o avanço de diversos projetos diante de uma ameaça que, como em um processo autofágico, vem do próprio governo do país. Com o menor orçamento dos últimos 25 anos, a nossa ciência respira por aparelhos e demonstra uma faceta intrínseca aos(às) brasileiros(as): a capacidade de resiliência e resistência. Apesar da beleza dessa simbologia, em uma perspectiva pragmática, isso não basta. Não se sustenta. É necessário investimento, estrutura, planejamento e estabilidade — aspectos que estão em falta diante das recentes ações da gestão federal do governo.

Enquanto a garra dos(as) pesquisadores(as) e as conquistas autônomas das universidades públicas representam o potencial da ciência no país, a onda de negacionismo e o descaso do governo com a área vão na contramão e apresentam uma característica, mais do que anticientífica, essencialmente antiestado.

No dia 8 de julho é celebrado o Dia Nacional da Ciência e o Dia Nacional do(a) Pesquisador(a) Científico(a). A data reforça a importância de dar visibilidade às produções científicas do país, bem como divulgar e difundir esse conhecimento para que a sociedade reconheça o seu papel e função na nossa forma de existir socialmente. No atual cenário, ainda mais fragilizado pelas mazelas da pandemia, relembrar o significado dessa data se faz ainda mais relevante — para demonstrar que um dos principais fatores de solução para o país se reerguer está no saber científico e na manutenção das universidades públicas.

O histórico dos avanços sociopolíticos e socioculturais do Brasil, inclusive, pode ser refletido por alguns números das nossas instituições públicas de ensino superior.

Um dado significativo a ser destacado se dá pela proporção de pessoas pretas ou pardas (que compõem a população negra) preenchendo vagas de ensino superior em instituições públicas brasileiras. Em 2018, pela primeira vez, chegou a 50,3%, segundo dados do informativo Desigualdades Sociais por Cor ou Raça no Brasil, divulgado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). É de se considerar, entretanto, que a parcela dessa população representa 55,8% dos brasileiros.

No indicador de gênero, para citar um exemplo, a Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) é a instituição brasileira mais comprometida com a igualdade de gênero no país e a 89.ª do mundo, segundo o Impact Rankings 2021 realizado pela revista britânica Times Higher Education (THE). O ranking incluiu 1.117 universidades de 94 países e avaliou as instituições em 17 categorias diferentes. Para a elaboração da lista de igualdade de gênero, a THE utilizou métricas como a proporção da produção de pesquisa de autoria de mulheres, número de publicações sobre igualdade de gênero, quantidade de mulheres formadas, entre outras.

Já no aspecto da produção científica de um modo geral, há números que impressionam, mas que poderiam ser, ainda, muito melhores. De acordo com um levantamento realizado pelo Clarivate Analytics a pedido da Capes, o país, no período de 2011 a 2016, publicou mais de 250.000 artigos na base de dados Web of Science em todas as áreas do conhecimento, o que garantiu a 13.ª posição na produção científica global (com mais de 190 países). Dessas publicações, mais de 90% provém das universidades públicas.

Paralelamente, a redução do orçamento do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações (MCTI) no período de 2014 a 2018 (contemplado por um relatório da Unesco) foi da ordem de 50%. De 2012 para 2021, a redução é ainda mais drástica: 84% — de R$ 11,5 bilhões para R$ 1,8 bilhão, com os valores atualizados pela inflação.

Por outro lado, de acordo com um estudo do Instituto de Pesquisa Econômica e Aplicada (Ipea), ao longo do tempo, o Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FNDCT) teve receitas crescentes. Em 2002, representava 0,02% do Produto Interno Bruto (PIB), enquanto em 2020 alcançou 0,1% do PIB. Esse avanço, no entanto, foi paralisado diante dos recursos contingenciados. A parcela não executada do orçamento chegou a 89,4% no ano passado.

A Lei Complementar n.º 177, aprovada neste ano e que impede o governo de bloquear esses recursos, pode alterar a disponibilidade do orçamento de R$ 2,2 bilhões de 2020 para R$ 9 bilhões até 2024. O que, apesar de necessário, ainda não é ideal para a demanda científica do país, bem como para o retorno econômico que o cumprimento dessa demanda pode proporcionar.

Entre avanços (mesmo a passos lentos e com limitações) e retrocessos, esses dados representam algumas das várias esferas que compõem a engrenagem política, econômica e social envolvendo o investimento em ciência e tecnologia. O Brasil é um país com um alto índice de desigualdade social, a economia está em frangalhos e diversas pesquisas, incluindo produção de vacinas contra a covid-19, podem ser interrompidas. Assim, faz-se necessário reconhecer a atuação de pesquisadores(as) e as produções das universidades públicas como ação estratégica para o desenvolvimento da nossa sociedade, portanto com um papel político e, acima de tudo, humanitário — o qual será fundamental para responder os desafios do tempo presente.

*Raiane Assumpção é vice-reitora em exercício da Reitoria da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp)

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