A Importância do Hidrogênio para o Brasil: uma fonte para energia limpa e um caminho para a produção de fertilizantes nitrogenados

Yvan J. O. Asencios é professor de Engenharia Química e chefe do Laboratório Pesquisa em Catálise e Química Sustentável do Instituto do Mar (IMar/Unifesp) — Campus Baixada Santista

O hidrogênio como alternativa energética

O hidrogênio (H) é o elemento químico mais leve da tabela periódica, com massa molar igual a 1 grama por mol (g.mol-1). Em condições ambientais é um gás inodoro, incoloro, menos denso que o ar; possui um alto poder calorífico (quantidade de energia por unidade de massa liberada por uma substância por combustão) igual a 141,4 kJ.g-1, muito superior ao do metano (55,5 kJ.g-1), gasolina (47.5 kJ.g-1), diesel (44,8 kJ.g-1) e metanol (20 kJ.g-1) [Fonte: Green methods for hydrogen production]. Como pode ser visto, o hidrogênio é um gás potencialmente explosivo e são necessárias condições especiais para seu manuseio e armazenamento. A diferença dos combustíveis fósseis anteriormente mencionados é que, quando queimam, produzem dióxido de carbono (CO2), um dos principais gases de efeito estufa, e água. A combustão do hidrogênio libera uma grande quantidade de energia e água como produto (Reação 1).

2H2 (g) + O2 (g) → 2H2O (v) ∆Hº298K = −286 kJ.mol-1 — (Reação 1)

O hidrogênio é o elemento químico mais abundante no universo. É abundante na superfície terrestre, pois encontra-se formando parte das moléculas da água, fórmula molecular H2O, também se encontra nas moléculas dos hidrocarbonetos, por exemplo, no petróleo, e em muitas outras substâncias orgânicas. No entanto, devido ao fato de o hidrogênio não se encontrar de forma isolada no nosso planeta, são necessários processos químicos para poder extraí-lo. Hoje em dia, com os avanços científicos, é possível extrair hidrogênio de diversas fontes, por exemplo, água, petróleo (e derivados), gás natural, etanol, metanol, biomassa, biogás, algas, glicerol, etc. Cada fonte segue um processo específico para produzir hidrogênio. No entanto, a maioria desses procedimentos ainda está em escala de laboratório ou existe apenas em estudos a nível piloto.

Hidrogênio verde e hidrogênio cinza

O hidrogênio produzido a partir de combustíveis fósseis é conhecido como hidrogênio cinza. Embora o hidrogênio não tenha cor, essa é uma forma de denominar sua origem. Atualmente a produção mundial de hidrogênio vem do gás de síntese, que é uma mistura gasosa formada por monóxido de carbono (CO) e Hidrogênio (H2), chamada também Syngas (por suas siglas em inglês Synthesis-Gas), produzida a partir de combustíveis fósseis, principalmente do gás natural, por meio de um processo chamado Reforma a Vapor do Metano (RVM, Reação 2).

O gás de síntese também pode ser produzido a partir de outras fontes que não dependem de combustíveis fósseis, como biogás, bioetanol, glicerol, bio-óleo, entre outros. O gás de síntese é uma matéria-prima de grande importância para a indústria química e petroquímica, pois, a partir dele, é possível produzir hidrogênio, por meio de um processo de purificação chamado Reação de Deslocamento gás-água ou WGSR (por sua siglas em inglês: Water Gas Shift Reaction), além de outros compostos de alto valor industrial, como metanol, usado como solvente, combustível, etc., dimetil-éter (DME), também usado como combustível com propriedades similares ao diesel, combustíveis líquidos Fischer-Tropsch, e amônia (NH3), usada principalmente para produzir fertilizantes. O gás de síntese pode ser usado também em combustão direta.

A maior parte do hidrogênio e gás de síntese produzido no mundo é destinado à produção de fertilizantes, refinamento do petróleo e na indústria petroquímica. Recentemente tem-se visto o hidrogênio como uma fonte promissora de energia limpa. Seu uso como combustível em carros se dá mediante dispositivos chamados células a combustível, cuja tecnologia é accessível no mercado europeu, norte-americano e em outros países, como Japão, Coreia do Sul, entre outros, por enquanto. Existe a possibilidade de usar hidrogênio por combustão direta, como mostram alguns estudos recentes, por exemplo, em turbinas.

O hidrogênio também pode ser produzido por eletrólise da água (Reação 3). Nesse caso, não requer combustíveis fósseis. A eletrólise da água é amplamente conhecida. É um processo que precisa de água, energia elétrica e eletrodos para acontecer. A energia elétrica poder vir de fontes renováveis, por exemplo, usinas de energia renovável, como as eólicas, solares, hidrelétricas, etc, e suprir essa energia necessária para a obtenção de hidrogênio. O hidrogênio produzido a partir da eletrólise da água e energia elétrica proveniente de energias renováveis é conhecido como hidrogênio verde.

H2O → H2 + ½ O2 (ΔH298K= 285,8 kJ.mol-1, ΔG298K= 1,23 v) — (Reação 3)

Usar água de mar nesse processo seria maravilhoso, especialmente pela grande quantidade de água marinha disponível no nosso planeta, no entanto o seu uso apresenta alguns problemas devido à quantidade de sais que possui, o que dificulta o processo e também origina uma abundância de subprodutos/resíduos, como por exemplo a salmoura, que precisa ser tratada antes de ser despejada no mar, pois a ausência do processo pode modificar o ambiente e influenciar a flora e fauna marinha. Seu despejo é algo que deve ser analisado com cautela. O uso industrial de salmoura ainda não é muito diversificado. Atualmente é possível usá-la na indústria de alimentos e para produzir cloro gasoso e sódio, ambos de valor industrial. No entanto, a produção destes últimos, acoplados a um sistema de produção de hidrogênio verde, é um tema que precisa ser avaliado de forma global e vencer barreiras econômicas, logísticas e ambientais.

No caso do Brasil, a tecnologia baseada em eletrólise é muito atrativa, principalmente pela existência de grandes recursos naturais e pelas diversas hidrelétricas espalhadas pelo país, já que 87% da matriz energética brasileira é proveniente de energias renováveis em 2021 (e no resto do mundo este valor era de 27% em 2019), e 65,2% desse valor vem das hidrelétricas, segundo dados da Empresa de Pesquisa Energética de 2021. Os processos eletrolíticos são bem conhecidos e facilmente escaláveis, portanto, tal tecnologia é a mais coerente no curto prazo.

Ainda em relação ao hidrogênio, é importante mencionar que o elemento químico também pode ser obtido por meio de processos fotocatalíticos, utilizando energia solar e água, ao efetuar a separação de água com catalisador semicondutor.

A utilização do hidrogênio como fonte de energia necessita de dispositivos eletroquímicos chamados de células a combustível (que convertem energia química em energia elétrica, mediante reações de oxidação e redução do hidrogênio e do oxigênio respectivamente, produzem água e energia elétrica), de cilindros especiais para seu armazenamento e adequação de toda uma cadeia de abastecimento até o(a) consumidor(a) final, além das legislações locais. Todos esses são desafios para alcançar uma economia que gire em torno do hidrogênio, e não mais do petróleo. Isso não está tão próximo da realidade dos países em desenvolvimento. Outras alternativas estão mais próximas de serem desenvolvidas, como a bioenergia e as energias renováveis.

Existem outras definições do hidrogênio, como, por exemplo, hidrogênio azul, que se refere ao elemento obtido a partir da queima de combustíveis fósseis, seguido pela captura e armazenamento de dióxido de carbono emitido no processo. O hidrogênio turquesa é aquele produzido pela quebra da molécula do metano por meio de pirólise. A pirólise do gás natural é um processo que demanda energia térmica (endotérmico) para converter o metano em hidrogênio e carbono sólido.

Hidrogênio como fonte de armazenamento de energia e sua relação com as energias renováveis.

O uso de energias renováveis é extremamente necessário nos tempos de hoje para evitar a emissão de gases de efeito estufa e as consequências do aumento da temperatura do planeta e para garantir um futuro sustentável que perdure para as próximas gerações. No entanto, a dependência dessas energias do clima faz dela uma fonte de energia intermitente, pois põem em risco a contínua produção de energia em ausência de condições climáticas favoráveis, por exemplo, de noite, quando não se tem a luz do sol. Sendo assim, junto com os sistemas de energias renováveis se faz necessário o armazenamento de energia elétrica, que atualmente é feito por meio de baterias, que podem ser de chumbo-ácido, de níquel-cadmio ou de Íons de Lítio. No entanto, o armazenamento de energia em baterias ainda é caro e pouco eficiente. Baterias de alto desempenho ainda são um desafio (alto desempenho em termos de máxima capacidade de armazenamento de energia, baixo peso, pouco espaço e baixo custo). Uma alternativa a isto é armazenar energia em forma de hidrogênio, usando o excesso de energia renovável para produzi-lo, devido às características desse elemento químico mencionadas anteriormente.

O papel do hidrogênio para atingir os acordos internacionais.

Em um esforço conjunto da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (UNFCCC), foi criado o Protocolo de Paris, um acordo que tem como principal objetivo mitigar as mudanças climáticas e diminuir as temperaturas globais bem abaixo de 2, em comparação com os níveis pré-industriais (UNFCC, 2020), além de acelerar investimentos e ações para um futuro mais sustentável. O Brasil se comprometeu a reduzir as emissões de gases de efeito estufa em 37% abaixo dos níveis de 2005 em 2025 e, consequentemente, em 43% abaixo dos níveis de 2005, em 2030, segundo dados do Ministério do Meio Ambiente divulgados em 2020. Para cumprir os prazos estabelecidos pelo Protocolo de Paris, novas medidas sustentáveis estão sendo desenhadas pelos países assinantes de dito acordo, para mitigar os impactos do uso de combustíveis fósseis no planeta. Existem fortes motivos para o desenvolvimento da tecnologia de hidrogênio no Brasil, dentre elas podemos citar:

1) diminuir as mudanças climáticas e a emissão dos gases de efeito estufa;

2) combater a alta dependência dos combustíveis fósseis. O Brasil ainda depende dos combustíveis fósseis (concentrados principalmente nos meios de transporte que usam combustível automotor). Apesar disso o Brasil tem uma das matrizes elétricas mais limpas do mundo, com participação de 70% das energias renováveis na matriz elétrica nacional. No entanto, estas dependem do clima (as desvantagens foram mencionadas anteriormente). Além disso, 60% desta participação vem das centrais hidroelétricas, que tem uma alta dependência das chuvas e são mais sensíveis a mudanças climáticas e da floresta amazônica. É necessária uma matriz elétrica mais diversa e ainda tem 30% da energia que ainda vem dos combustíveis fósseis (os dados são do Balanço Energético Brasileiro, de 2021, da Empresa de Pesquisa Energética);

3) variação do preço do petróleo. O valor do preço do petróleo segue uma complexa fórmula que extrapola os objetivos desse artigo, pois esta depende de muitas variáveis, como a oferta e a demanda global, o preço no mercado internacional, o preço do dólar, a política interna de cada país e a geopolítica. Vale lembrar que em inícios da pandemia vimos o preço do barril do petróleo cair até valores negativos e disparar seu valor ao longo destes últimos meses em razão da guerra entre a Ucrânia e a Rússia. Alcançar a independência energética do petróleo e a segurança energética são alvos que todo país almeja;

4) os desafios do controle das reservas de petróleo incertas;

5) a crescente demanda energética mundial.

Países em desenvolvimento, como os da América do Sul, têm um enorme potencial de geração de energia solar, eólica, hidrelétrica e bioenergia. Todas elas são promissoras. Um cenário não tão favorável é visto em países desenvolvidos, por exemplo, os que compõem a União Europeia e os EUA, onde o uso do hidrogênio como combustível parece ser uma alternativa rápida para cumprir o Acordo de Paris. O Brasil tem potencial para se tornar um grande exportador do hidrogênio, o que geraria muitos empregos e demandaria mão de obra qualificada.

Gás de síntese e a segurança alimentar no Brasil

As plantas precisam de macronutrientes N-P-K (símbolos dos elementos químicos nitrogênio-fosforo-potássio, respectivamente), além de sol e água, lógico, para poder subsistir e crescer. Os fertilizantes contêm esses macronutrientes. No caso dos fertilizantes a base de nitrogênio, eles são feitos a partir de amônia NH3. Embora o nitrogênio seja um elemento em abundância no planeta Terra, pois se encontra no ar atmosférico em uma composição de 79% em volume, as plantas precisam absorvê-lo pela raiz (sob a forma de NO3- ou NH4+), com o uso de fertilizantes quando a terra não tem esse nutriente em abundância. Uma forma de fixar o nitrogênio atmosférico foi descoberta há mais de 100 anos, pouco antes da Primeira Guerra Mundial, na Alemanha, pelo químico Fritz Harber, que descobriu a síntese de amônia usando nitrogênio do ar e hidrogênio. A industrialização do processo foi feita posteriormente por Carlos Bosch. Essas descobertas levaram ambos a ganhar o prêmio Nobel em Química nos anos 1918 e 1931, respectivamente. O processo mais conhecido como Harber-Bosch é usado até hoje (Reação 4). Esse processo usa hidrogênio, obtido a partir do gás natural, nitrogênio e catalisadores.

N2(g) + 3 H2 (g) ↔ 2 NH3 (g) ΔH298K= -92,22 kJ.mol-1 — (Reação 4)

O Brasil exporta alimentos para abastecer a demanda de quase um bilhão de pessoas no mundo; em torno de uma sexta-parte da população do planeta, segundo Senra afirmou em 2020. Contrariamente a isso, têm-se reportado recentemente que 33 milhões de pessoas no Brasil não têm o que comer. Existem vários motivos para essa escassez de alimentos, e uma delas está relacionada à alta do preço dos fertilizantes, que torna os preços dos alimentos mais caros.

O Brasil é o quarto maior consumidor de fertilizantes do mundo, antecedem a ele a China, a Índia e os Estados Unidos, e é o maior importador mundial desses insumos. Só para ter uma ideia, em 2021 o Brasil consumiu mais de 40 milhões de toneladas de fertilizantes, 85% foram importados. O maior exportador de N-P-K do planeta é a Rússia. O hidrogênio necessário para síntese da amônia (a Reação 4) vem a partir do gás natural, que se transforma em gás de síntese por meio da Reação 2, vista anteriormente, combustível do qual a Rússia é o segundo maior produtor do mundo e o maior exportador. A amônia é a matéria-prima para a produção de fertilizantes, por exemplo, a ureia e o nitrato de amônia. A Rússia e países do Oriente Médio, como Arábia Saudita, Catar e Irã — grandes produtores de petróleo e gás natural — são os maiores exportadores (as informações estão nesta matéria do UOL Economia).

A intensificação da produção de hidrogênio no Brasil ajudaria, consequentemente, a produção local de amônia e, com isto, a produção de fertilizantes nitrogenados. Isso traria benefícios à economia do pais e também ajudar a diminuir essa insegurança alimentar.

Pesquisas sobre o tema no Brasil

De acordo com uma das mais importantes bases de artigos científicos, a Scopus, as pesquisas no mundo sobre hidrogênio e Gás de Síntese (Syngas) começaram a ganhar mais interesse desde 2004 com um enorme crescimento desde então, resultando em 62.292 artigos publicados entre 1964 e 2022. As pesquisas são lideradas por países como a China, Estados unidos, Japão, Coreia do Sul, Índia, Alemanha, entre outros. E no cenário regional aparece o Brasil destacando-se na América Latina. Muitos dos trabalhos no Brasil se centram na produção de hidrogênio/gás de síntese a partir de bioprodutos, como o etanol de cana, glicerol, bio-óleo, biogás. Dito isso, o Brasil é uma potência mundial em biocombustíveis. Os dados se encontram na Figura 1.

Na Unifesp tenho realizado pesquisas sobre Syngas, no Laboratório de Catálise e Química Sustentável do IMar/Unifesp, em parceria com colegas do Instituto de Química de São Carlos da Universidade de São Paulo, do Centro Nacional de Pesquisa em Energia e Materiais (CNPEM) e da Universidade Federal do ABC (UFABC). Por exemplo, tenho estudado a produção de gás de síntese a partir de uma mistura sintética de biogás, biometano, bioetanol. Também tenho realizado estudos de produção de hidrogênio a partir de água e luz solar, por meio de um processo chamado fotocatálise-heterogênea. Entre vários outros estudos meus e dos(das) meus(minhas) alunos(as) relacionados com o tema do hidrogênio, que podem ser encontrados aqui.

Embora esses processos ainda estejam em escala de laboratório, os resultados são muito promissores, ainda mais considerando o cenário global atual.

Figura 1. Resultado da busca na plataforma Scopus usando as palavras chaves hydrogen e production. Disponível em: <https://www.scopus.com/search/form.uri?display=basic#basic>. Acesso em: 26 jun. 2022.

A implementação da tecnologia para produzir hidrogênio e o apoio à ciência e às universidades públicas no Brasil facilitariam a construção de um projeto de futuro energético do Brasil, e com isso alcançaria a independência energética e de fertilizantes nitrogenados. Isso também ajudaria a criar demanda de obra qualificada e aqueceria a economia.

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