Panorama da cidade de Gaza em abril de 2011, imagem por Mujaddara

30 dias de terror em Gaza

João Amorim, doutor e livre-docente em Direito Internacional. Professor de Direito Internacional da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp)

Recentemente alcançamos a triste data de 30 dias de guerra na Faixa de Gaza. Dias de um conflito desproporcional, entre uma das mais bem treinadas e letais forças de defesa do planeta, contra a população civil da Faixa de Gaza, em retaliação ao ataque do grupo armado Hamas, ocorrido em 07.10.

Por mais que os ataques do Hamas devam ser condenados, e a morte e o sequestro de civis inocentes, de diversas nacionalidades, imponham o repúdio veemente a este ato, com o devido ultimato para a libertação dos reféns, vivos e em segurança, um imperativo moral a ser cumprido não apenas pela população israelense, mas também por todas as lideranças mundiais, é inegável que o conflito, nos mais de 30 dias de sua vigência, desdobrou em uma pavorosa sucessão de crimes de guerra, genocídio e limpeza étnica, perpetrados pelas Forças de Defesa Israelense, sem qualquer tipo de respeito ou consideração pela vida de milhões de civis inocentes.

O ímpeto na prioridade no salvamento dos reféns em poder do Hamas arrefece, e vem sendo superado pelos interesses geopolíticos do atual governo israelense, focados na limpeza étnica, genocídio e ocupação da Faixa de Gaza, com repercussões letais tanto na Cisjordânia quanto em territórios da Síria e do Líbano.

Há décadas as políticas israelenses em relação à população palestina em seu território e nos territórios ocupados se subsomem à definição legal internacional de Apartheid, e desde 2007 o governo Israelense transformou a Faixa de Gaza no que a ONU define como “a maior prisão a céu aberto do mundo”, que encarcera milhões de pessoas — que não cometeram crime algum, além do de terem nascido do lado “errado” do muro, com a nacionalidade “errada”, com a religião “errada” –, e os condena a uma vida de privação, como à que estiveram submetidos milhares de pessoas nos guetos nazistas europeus na II Guerra Mundial.

Há cerca de 17 anos, Israel controla integralmente o acesso e todas as fronteiras da Faixa de Gaza, estrangula a sua economia, limita a entrada de bens de primeira necessidade, raciona o fornecimento de água e eletricidade permitindo apenas pouco mais de cinco horas de seu fornecimento diariamente, dentre outras regras que estrangulam a vida — ou, melhor, semivida — da população da Faixa de Gaza, em sua esmagadora maioria mulheres e crianças, com pesada mão-de-ferro.

Essa situação serve de justificativa ou legitimação para ataques, como o ocorrido em 07.10? Não. Muito embora sirva para confrontar o processo de desumanização do povo palestino, em especial, e dos povos árabes e muçulmanos em geral, perpetrada por diversas potências internacionais, dentre as quais Israel e Estados Unidos da América (EUA), com o apoio de boa parte da mídia global, há décadas, o que faz com que o senso comum imediatamente associe toda e qualquer pessoa desses grupos como terroristas, criminosos ou pessoas descartáveis, num processo de desumanização e desconsideração da vida humana muito semelhante ao que ocorreu com diversos povos e pessoas na Alemanha da década de 1930.

A renitente recusa do Israel em um cessar-fogo, assim como sua negativa em fornecer gêneros de primeira necessidade, ou estabelecer corredores humanitários, oficialmente declarada como estratégia de guerra, constituem os dois primeiros de uma lista de crimes de guerra já perpetrados pelas suas forças de segurança e seu governo.

Além disso, revela também que os objetivos militares de Israel na Faixa de Gaza, assim como simultaneamente em regiões do sul do Líbano e da Síria, extrapolam completamente o argumento, ou desculpa, do resgate dos reféns. Aliás, quase ninguém mais fala sobre eles, além dos seus familiares angustiados.

Em seu discurso na abertura da Assembleia Geral da ONU deste ano, o primeiro-ministro israelense anunciou que seu governo havia iniciado um projeto ambicioso de reconfiguração para um “novo” Oriente Médio — em alinhamento com os interesses estadunidenses –, com a celebração de acordos bilaterais com diversos países árabes, os mais recentes com Emirados Árabes Unidos, Bahrein, Marrocos e Sudão (os chamados Acordos Abraão, ou Abraham Accords), de 2020, com o auxílio do governo Trump, e que esperava que Joe Biden o auxiliasse a consolidar formalmente as relações com a Arábia Saudita. Tais acordos permitiriam a formação de um “corredor” de fornecimento de petróleo e gás natural, além de se constituir em uma nova rota comercial e tecnológica — claramente em oposição ao projeto chinês da Nova Rota da Seda –, viabilizando, dentre outras coisas, o fornecimento de gás natural e petróleo para a Europa e, consequentemente, para os EUA.

Atos terroristas devem ser condenados em todas as suas formas. Mas, é imperativo, por dever de honestidade intelectual, que todo ato terrorista seja condenado e combatido, independente de quem o pratique. Principalmente quando acompanhado da prática de genocídio, ocupação ilegal de terras, deslocamento forçado ou crimes de guerra. Até porque a ninguém é dado o monopólio exclusivo da dor e do sofrimento.

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